Quando governos distorcem fatos de forma sistematizada é sinal que temos que nos preocupar. É perturbador que um governante possa torcer contra uma iniciativa de vacinação. E é ainda mais perturbador saber da existência de equipes organizadas fabricando e disseminando notícias falsas pela internet, questionando a necessidade e segurança das campanhas de vacinação. Esse é um pouco do quadro que vivemos, mas é importante darmos alguns passos atrás para entendermos este ambiente de desinformação, que deslegitima a imprensa e as instituições.
Por milhares de anos convivemos com uma maioria de analfabetos na humanidade. Dominar a leitura e a escrita era um privilégio da elite política, militar e religiosa em diferentes épocas e regiões do globo. Durante todo o século XIX, mais de 80% da população mundial ainda era composta de analfabetos. A maioria alfabetizada só foi alcançada entre os anos de 1940 e 1950. Segundo dados da OECD e da UNESCO de 2019, hoje temos mais de 80% da população mundial alfabetizada. No Brasil, em 2015, 93% da população já sabia ler e escrever.
Vencida a primeira etapa, ao reconhecer padrões gramaticais e estruturas de frases, avançamos para o próximo degrau, a interpretação. Ler e compreender o que está escrito, o significado das palavras e as mensagens transmitidas por um texto. Neste ponto, aproximadamente 30% da população do Brasil entre 15 e 64 anos ainda pode ser classificada como analfabetos funcionais, ou seja, incapazes de entender o conteúdo lido.
Com o crescente acesso à internet, smartphones e redes sociais, uma população pouco preparada passa a ser exposta a técnicas e sistemas sofisticados de manipulação de opiniões e comportamentos. Mesmo entre os que não são analfabetos funcionais (uma população teoricamente menos vulnerável), há uma parcela significativa que não entende basicamente a estrutura de funcionamento das plataformas digitais.
A possibilidade de captura de dados e de metadados – cada passo, cada página e cada clique vigiados – proporciona um ambiente favorável para a desconstrução de realidade e biografias. A saída da Inglaterra da União Européia (Brexit) foi decidida por margem bastante apertada e grande parte dos alvos de desinformação e fake news eram antigos trabalhadores de regiões industriais que sofriam com o fechamento de fábricas que migraram para a China e outros países asiáticos.
Não devemos nos enganar. Nossa privacidade e nossas preferências estão escancaradas. Gigantes como Google/Youtube, Facebook/Whatsapp/Instagram e Twitter, sabem exatamente o tempo que passamos em suas páginas, quais pessoas ou notícias mais nos interessam e mesmo a reação de nossa face a um ou outro conteúdo.
E por identificação de padrões, é possível revelar segredos que jamais teríamos coragem de verbalizar. Esta é a realidade da rede e de impérios que deliberadamente foram construídos para permitir um nível elevado de manipulação do comportamento humano.
As citações abaixo podem ser encontradas no livro: Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais, de Jaron Lanier, páginas 17 e 18.
Vejam uma declaração do primeiro Presidente do Facebook, Sean Parker:
Precisamos lhe dar uma pequena dose de dopamina de vez em quando, porque alguém deu like ou comentou uma foto ou postagem, ou seja lá o que for (…) Isso é um circuito de feedback de validação social (…) exatamente o tipo de coisa que um hacker como eu inventaria, porque explora a vulnerabilidade da psicologia humana (…) Os inventores, criadores – eu, Mark [Zuckerberg], Kevin Systrom no Instagram, todas essas pessoas – tinham consciência disso. E fizemos isso mesmo assim (…) isso muda a relação de vocês com a sociedade, uns com os outros (…) Isso provavelmente interfere de maneiras estranhas na produtividade. Só Deus sabe o que as redes sociais estão fazendo com o cérebro dos nossos filhos.
E do ex-vice-presidente de crescimento de usuários, também do Facebook, Chamath Palihapitiya:
Criamos ciclos de feedback de curto prazo impulsionados pela dopamina que estão destruindo o funcionamento da sociedade (…) Nenhum discurso civil, nenhuma cooperação; apenas desinformação, inverdades. E não é só um problema americano – não se trata de anúncios russos. É um problema global (…) Sinto uma culpa tremenda. Acho que, no fundo, todos sabíamos – embora tenhamos fingido que provavelmente não seríamos surpreendidos por nenhuma consequência ruim. Acho que, bem, bem lá no fundo, nós meio que sabíamos que algo ruim poderia acontecer (…) Então neste exato momento nos encontramos em uma situação realmente ruim, na minha opinião. Isso está erodindo o alicerce de como as pessoas se comportam umas com as outras. E não tenho nenhuma solução boa. Minha solução é: não uso mais essas ferramentas. Não uso há anos.
Não é coincidência o apego a discursos de que o STF limitou a atuação do poder executivo federal no combate à pandemia; a prescrição de medicamentos de eficácia não comprovados para Covid-19, o questionamento sobre efetividade das vacinas ou mesmo a deslegitimação dos órgãos de imprensa. Há uma teoria que sustenta essas ações, potencializada pelo alcance das redes.
Em 21 lições para o século 21, Yuval Harari (pág. 294) nos lembra que Hitler, em Mein Kampf, escreveu que “a mais brilhante técnica de propaganda não vai ter sucesso a menos que se leve sempre em conta um princípio fundamental – ela tem de se limitar a alguns pontos e repeti-los sem parar”.
As mesmas redes sociais que fragilizaram a imprensa tradicional por capturar grande parte das receitas com anúncios e propagandas, hoje servem de instrumentos de desinformação. Fosse uma população educada, que checasse as fontes, e se aprofundasse nas questões que pretende opinar ou nas notícias que pretende repassar, isso nem seria uma pauta.
Tenho a impressão de que ferramentas como Twitter e Whatsapp tem evoluído na contenção dos danos. Classificar as mensagens como conteúdo suspeito ou potencialmente danoso, possui um valor pedagógico mais elevado que o cancelamento de contas ou a censura de opiniões. Enquanto não pudermos contar com uma barreira pela educação, temos que ser vigilantes em nossos círculos pessoais, valorizar as instituições e acreditar que órgãos de estado cumpram seu papel de apurar abusos e punir criminosos e marginais que operam a ignorância ainda vigente.
Na News deste mês, trataremos das diferenças entre a tese da inconstitucionalidade das contribuições ao Sistema S e da limitação da base de cálculo das referidas contribuições a 20 salários mínimos.
Também apresentaremos um quadro dos temas com as principais discussões tributárias hoje em pauta de julgamento no STF.
Um forte abraço.
Daniel Ávila Thiers Vieira